Gabrielle Rodrigues's profile

Parecer Constitucional

Assunto: Solicitação do parecer para a retirada do crucifixo em órgãos públicos do poder judiciário.

Ementa: Direito Constitucional. Estado laico. Liberdade de consciência e de crença. Direito fundamental. Intervenção constitucional. Princípio da proporcionalidade. Público versus Privado. 

Interessado: Leia por meio de suas advogadas subscritora.

1- RELATÓRIO
  A empresa consulente demanda parecer técnico-jurídico acerca do pedido de retirada de crucifixo dos tribunais, visto que a sua manutenção fere a laicidade estatal, bem como, a liberdade consciência e de crença, cujo teor representa um direito fundamental que cabe à constituição da República Federativa do Brasil resguardar. Ademais, ressalvo que nenhum direito é absoluto sendo necessário o princípio da proporcionalidade com a finalidade  de mensurar a compatibilidade entre o meio e o fim.
É o  relatório.

2- FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
  A questão proposta é relativa ao resguardo da liberdade de consciência e de crença, em consoante com a laicidade estatal. Inicialmente cumpre destacar que segundo o sociólogo Gustavo Lacerda o conceito de Estado laico consiste:

  “ [...] o Estado não professa nem favorece (nem pode professar ou favorecer) nenhuma religião; dessa forma, ele contrapõe-se ao Estado confessional – em que se inclui o assim chamado “Estado ateu”, considerando que este assume uma posição caracteristicamente religiosa, mesmo que seja em um sentido negativo. Dessa forma, seguindo a laicidade, o Estado não possui doutrina oficial, tendo como consequências adicionais que os cidadãos não precisam filiar-se a igrejas ou associações para terem o status de cidadãos e inexiste o crime de heresia (ou seja, de doutrinas e/ou interpretações discordantes e/ou contrárias à doutrina e à interpretação oficial)”. (LACERDA, 2014, p. 181).
  Diante disso, é notório que a separação do estado e da igreja é uma característica peculiar da modernidade em que as especulações deixam de ser na ordem teológica e passam a se equiparar na racionalidade humana. Nesse sentido, a introdução da laicidade nos Estados modernos impõe ao poder público um dever jurídico de neutralidade em face aos fenômenos religiosos. Ademais, no constitucionalismo democrático, observa-se a constante preocupação com a limitação do exercício do poder. Ocorre que se tratando da forma republicana de governo pressupõe que configura-se para todos e exista para todos, não podendo ser aprisionada por interesses secretários visto que o interesse da coletividade deve prevalecer. (STERNICK, 2007, p.2)
    No Brasil o respectivo princípio encontra-se através de uma vedação

  “ Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; (...)”

   Além disso a liberdade de consciência e de crença equiparada como direito fundamental e garantida pela constituição é expresso pelo artigo 5º:

  “Art.5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; (...)
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”

   Há de se notar que uma forte análise deve ser feita a respeito do preâmbulo da constituição de 1988 a qual faz menção expressa a Deus.

  “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assmbléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.” grifo nosso. 

     Segundo João Barbalho, o preâmbulo:

  “não é uma peça inútil ou de mero ornato na construção dela: mas simples palavras que constituem, resumem e proclamam o pensamento primordial e os intuitos dos que a arquitetam”(BARBALHO, 1924, p. 03 apud FERREIRA, 1989, p.03)

  Portanto, é através do preâmbulo da constituição que se extrai os valores e ideais considerados importantes do poder constituinte que a originou. Dessarte, que o entendimento do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI no 2.076/AC, Rel. Min. Carlos Velloso destacou que o preâmbulo constitucional não possui força normativa. Sendo certo que a menção a uma entidade divina não descaracteriza a laicidade estatal e não se confronta com o dispositivo no artigo 19, I, da Constituição Federal. Desse modo, ressalta que as palavras significam apenas e tão somente indícios da religiosidade do poder constituinte. Ora, se a constituição de 1988, é denotada de um longo processo político-institucional, sobretudo pelo Decreto 119 A, de 17 de janeiro de 1890, cujo teor dispõe que o Estado Brasileiro é neutro as diversas confissões religiosas existentes em seu seio social. Dito isso, é nesse cenário que se insere o complexo debate acerca dos símbolos religiosos gerenciados em espaços público: De que modo admitir um país que traz constitucionalmente elementos de laicidade, considerar legítimo que os prédios públicos ostentam símbolos religiosos de quaisquer natureza, ainda que se possa enxergar raízes na formação histórica da sociedade e suas respectivas tradições? (STERNICK, 2007, p.6 e 7)
   Evidentemente que para arguir tais respostas uma análise referente à natureza, o significado e os efeitos da confusão entre símbolos religiosos e o Estado laico deve ser abordada.
  O tema dos símbolos religiosos no espaço público é de crucial relevância à devida concepção do sentimento de pertença comum dos cidadãos em relação a uma determinada coletividade política (CASAMASSO 2006,p331).
  Isso porque, cabe ao Estado traduzir através de expressões simbólicas ostentadas em seu domínio elementos identitários comuns a todos os membros da sociedade e não apenas a uma parcela da população católica mesmo que esta seja influente, grifo nosso.
  Por isso, a laicidade do Estado deve assegurar um espaço comum neutro e emancipado de expressões desagregadoras, as quais porventura sejam pertinentes às consciências identitárias de um grupo determinado em detrimento da dos demais. (CASAMASSO, 2006, p.331)
  Nesse sentido, o Estado deve-se abster completamente de proclamar qualquer forma de religiosidade respeitando assim a religião da minoria como também daqueles que não professam nenhuma crença.
  Visto que o parecer em questão é sobre a retirada de símbolos religiosos em espaços públicos, uma verificação sobre o conceito de símbolo, em particular o crucifixo, se mostra pertinente.
  Portanto, símbolo é a espécie de signo que funciona como um simulacro livre, construído pelo conhecimento, com a intenção de dominar o mundo da experiência sensível e captá-lo como um mundo organizado de acordo com determinadas leis. (CASSIRER, 2001, p30).
  No que diz respeito ao crucifixo convém ilustrar o que aduz Daniel Sarmento:

  “O crucifixo não é um mero adorno, utilizado apenas para embelezar o ambiente. Pelo contrário, ele é portador de um forte sentido religioso, associado ao cristianismo e à sua figura sagrada - Jesus Cristo. Por isso, é óbvio que quem luta pela manutenção dos crucifixos em espaços públicos, não o faz por razões estéticas, mas pela sua identificação com os valores religiosos que este símbolo encarna, e pela sua crença, refletida ou não, sobre a legitimidade de o Estado tornar-se um porta-voz destes mesmos valores” (SARMENTO,2007 p.10)

   Dessa maneira, o crucifixo se apresenta como ícone dos valores cristãos e um símbolo da Igreja Católica. Sob tal conceito fica evidente que quando o Estado ente este que deveria ser neutro, visto que o Brasil é um país laico, ostenta símbolos com alto teor religioso em edifícios públicos imediatamente assume a expressa preferência pelo catolicismo.
  Cumpre ressaltar que afixados nas paredes das dependências públicas, os crucifixos não representam uma cultura ou tradição, mas uma
         “espécie de referência última para o Estado e para a cidadania, sugerindo haver uma conexão essencial entre o poder estatal e o poder divino, o que é inaceitável para os padrões de laicidade” (CASAMASSO, 2006, p.336 e 337)

   Registre-se que o magistrado Luke assim como qualquer cidadão brasileiro é extremamente livre para proferir suas crenças e credos. No entanto, não se pode olvidar que espaços públicos não pertencem ao mesmo e sim ao Estado Brasileiro,                          indubitavelmente esse ente estatal está plenamente submetido ao princípio da laicidade, devendo assim se manter neutro. 
   Nesse sentido, deve-se ressaltar diante do argumento supracitado que existe uma carência no juiz Luke de discernir o público e o privado.
   Tal  problemática se insere, por todo o país, visto que é comum a manter afixados crucifixos em salas de Tribunais, Assembléias Legislativas estaduais, câmaras legislativas municipais, escolas públicas e repartições da Administração Pública direta e indireta, entre outros. Oportuno se toma dizer que até mesmo no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal, órgãos institucionais de nível nacional, mantêm crucifixos em suas dependências. (STERNICK, 2007, p11)
      Como bem destaca a professora Elisa Olivito

  “a sua exposição sugere, de modo subliminar, uma implícita correspondência entre ensinamento escolar e verdade da Igreja, entre justiça divina e justiça terrena, entre poder civil e religião católica” (OLIVITO, 2004, p.564).

     Além disso, mister se faz ressaltar o que  dispõe o Artigo 13, § 1º:

   “Art. 13. A língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil. § 1º - São símbolos da República Federativa do Brasil a bandeira, o hino, as armas e o selo nacionais”

  O referido artigo nada menciona sobre outros símbolos, deixando claro que apenas a bandeira, o hino, as armas e o selo nacionais são elementos que representam o Brasil. Em virtude dessas considerações, ao se conservar um crucifixo em uma repartição pública, local onde diariamente inúmeros cidadãos de diferentes crenças ou aqueles que não professam nenhuma frequentam. Simbolicamente a democracia que o Brasil sustenta é adulterada pois exclui ou deixa de representar outros grupos religiosos, dando enfoque somente no catolicismo.
  Assim, é muito comum alegar em discursos da corrente pró-presença do crucifixo nos espaços públicos que o mesmo não tem caráter religioso, uma vez que, supostamente, expressaria valores morais independentes de qualquer fé. Porém há de se notar que (FILÓ; HIJAZ, 2014, p.170)

   “qualquer terráqueo, ao ver um crucifixo, tenderá a associá-lo imediatamente ao cristianismo e à sua divindade encarnada. Trata-se, muito provavelmente, do símbolo religioso mais conhecido em todo o mundo” (SARMENTO, 2007, p. 14)

   No que concerne às etapas da justificação constitucional  de uma intervenção num direito fundamental, deve-se ressaltar que nenhum direito é absoluto. No entanto, se tratando de direito fundamental a restrição só é admitida quando for estritamente necessário.
  Jurisprudência: STF, Pleno, RMS 23.452/RJ, Relator Ministro Celso de Mello, DJ de 12.05.2000, p. 20:
   “OS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS NÃO TÊM CARÁTER ABSOLUTO. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas - e considerado o substrato ético que as informa - permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros.”

  Quando tratamos de direitos com reserva de lei o legislador pode especificar e delimitar o conteúdo dos direitos fundamentais, usando da chamada liberdade de conformação.       Admite-se em tal caso, a restrição a um direito fundamental, uma vez que expressamente outorgada pela Constituição essa tarefa ao legislador ordinário. (FILHO,[s.d.],p.23)
   Nesse sentido, Canotilho adverte: 
  “Quando nos preceitos constitucionais se prevê expressamente a possibilidade de limitação dos direitos, liberdades e garantias, fala-se em direitos sujeitos a reserva de lei restritiva. Isso significa que a norma constitucional é simultaneamente: (1) uma norma de garantia, porque reconhece e garante um determinado âmbito de proteção ao direito fundamental; (2) uma norma de autorização de restrições, porque autoriza o legislador a estabelecer limites ao âmbito de proteção constitucionalmente garantido”

  Por outro lado, ao se tratar de um direito sem reserva de lei o princípio da proporcionalidade irá delimitar a análise entre meios e fins. 
  A proporcionalidade assume importante papel na análise das normas viciadas, por inconstitucionais, em casos que, apesar de o poder legislativo atuar dentro de formas estabelecidas pela própria Constituição, às vezes até seguindo finalidades por ela amparadas, exorbitam seus limites ao estabelecerem restrições excessivas a direitos, implicando, assim, prejuízos à própria efetividade destes. (BARROS, 2003 p. 25)
  Portanto, os direitos fundamentais, como componentes de um sistema unitário, estão relacionados reciprocamente, e de maneira condicionada, com outros bens jurídico-constitucionais, inferindo-se que eles terão seu conteúdo e limites delimitados em virtude de outros bens jurídico-constitucionais reconhecidos conjuntamente. (HÄBERLE,2003, p.33).
   Relacionando com o caso em tela, há de se notar que quando o Estado se auto denomina laico embarca no entendimento que o constituinte está em favor da liberdade de consciência e de crença, bem como, de um Estado neutro a qualquer forma religiosa. Portanto, a manutenção de crucifixos em tribunais é inconstitucional, cabendo ao legislador se valer de três etapas para condicionar a interferência em direitos fundamentais:
Adequação: O ato deve ser considerado adequado se o meio escolhido por ele alcançar ou promover o objetivo pretendido, ou seja, tal medida só é inadequada se não contribuir em nada para o objetivo alcançado.
 Necessidade: A medida adotada deve ser considerada necessária se não existir outro meio menos gravoso para atingir o mesmo objetivo.
 Proporcionalidade: trata-se de apontar qual direito, em determinado caso concreto, deve ser protegido: o direito atingido com a medida ou o direito que a medida quis prestigiar. (CARDOSO, 2016, p. 12 e 13)
   
  Desse modo, como Léia se encontrava em uma repartição pública de um Estado constitucionalmente laico, e conforme tudo que foi exposto resta dizer que a mesma teve sua liberdade de consciência e de crença ferida e se sentiu excluída daquela dependência por não proferir a mesma crença que o juiz Luke. Cabendo ao legislador avaliar o caso para delimitar através do princípio da proporcionalidade qual direito deve ser protegido.
 É o nosso parecer.

3- CONCLUSÃO
  Pelo exposto, o parecer é no sentido de retirada do crucifixo ou de quaisquer outros símbolos religiosos no espaço público brasileiro, visto que o Estado é constitucionalmente laico e a liberdade  de consciência e de crença é um direito fundamental. Vale ressaltar que o referido movimento não são atitudes anticlericais, temos plena consciência que o Brasil é um país historicamente construído mediante valores católicos que fazem parte da cultura do povo. O que se procura é a devida efetivação de valores republicanos e democráticos de um Estado preocupado em garantir a liberdade de crença de cada indivíduo e não impor uma determinada religião. Convém notar que no passado o Direito buscou sua legitimação no sagrado, no entanto, atualmente somos um país laico cujo princípio deve ser seguido e respeitado. 
  Diante disso, o Juiz Luke como um servidor do Estado, se assim desejar deve manter afixado crucifixo em dependências privadas do mesmo. Evidencia-se que  a sala de audiência se comporta como um espaço público portanto uma posição de imparcialidade é exigida por parte do magistrado. Desse modo, evitando possíveis inflûencias no resultado de julgamentos e respeitando o pluralismo religioso do Brasil, bem como daqueles que não professam nenhuma crença.

São Paulo, 30 de Outubro de 2020
Parecer Constitucional
Published:

Parecer Constitucional

Published:

Creative Fields